O GLOBO
PRIMEIRO CADERNO
29/09/2010
Notas de um marciano
ROBERTO DaMATTA
Cheguei ontem à região tropical da Terra. Curiosamente, o planeta é recortado num conjunto do que eles chamam de países: agrupamentos com histórias ridiculamente parecidas, encapsulados por territórios vistos como autônomos, dotados de leis próprias e norteados por um dogma chamado de soberania. Diferentemente de nós que nos sabemos ligados a todos os seres vivos e a todo o universo, pois nele estamos e a ele retornamos depois dos nossos bem vividos 500 anos com vida sexual plena e ativa, eles têm uma aguda consciência do diferente. Embora vizinhos e separados por marcos arbitrários, eles vivem como se fossem estrangeiros. Estão convencidos que são compartimentos coletivos singulares, capazes de praticar e fazer o que quiserem, mas sabem que são parte de um conjunto maior, conforme é claro ao nosso olhar marcianamente distanciado.
O resultado desta concepção individualista é o constante confronto com o bem-estar geral e coletivo; e um conjunto de dualidades que tem sido a tônica de sua visão de mundo. Pois, para eles, tudo se reduz a oposições do tipo real/ideal, nós/eles, humanidade/animalidade, vida/morte, pobres/ricos... quando — na verdade — sabemos que, quanto mais um lado engloba e recalca o outro, mais esse outro lado retorna assombrosamente fortalecido. Engolfados nessas oposições, os terráqueos tudo pressentem, mas nada podem fazer porque não têm como desmontar o seu sistema e a si mesmos de um golpe. É possível que venham a liquidarse. De fato, os países que chamam de “mais adiantados” e que consideram superiores são os que mais poluem e destroem e, não obstante, são os que mais exportam o seu modelo de exploração do planeta. Mesmo agora, quando uma consciência planetária os atingiu, eles continuam imitando esse modelo que tem como base uma suposta ilimitada riqueza do que enganadoramente chamam de “natureza”. Ademais, começam igualmente a descobrir que tudo tem relação com tudo, pois deles é uma coisa única e milagrosa: o seu planeta é vivo. Nele, conforme observamos há milênios com a nossa marciana inveja, tudo tem um ciclo e esses ciclos vitais se entrelaçam em circuitos complexos, de modo que há sempre um jogo milagroso e comovente entre a vida e a morte.
Ao chegar num país em forma de presunto, chamado Brasil, observo que estão em tempos eleitorais. Curioso que nem o presidente desta república tenta agir como árbitro, muito pelo contrário, sua visão é primariamente partidária, apaixonada e totalmente centrada no desejo de vencer a eleição a qualquer preço. O que ele aceita na vida (perder e ganhar) ele não aceita na Presidência. Li sua furiosa entrevista no meu computador telepático e fiquei estarrecido porque ele fala do papel dos jornais no Brasil, mas todo mundo sabe que ele próprio não lê. Pior: diz que tem azia quando lê algum jornal. Dei um giro pelo país e constatei que, mesmo tendo proclamado uma república em 1889, os brasileiros ainda não têm noção do que seja uma sociedade democrática. Pois confundem individualismo com egoísmo, e egoísmo com altruísmo.
Assim, fazem suas falcatruas em nome do que chamam de “povo”; e mesmo tendo uma visão partidária exclusiva e um tanto fascistoide, a faceta pessoal de suas vidas — seus laços com parentes e amigos — está sempre pronta a vir à tona nas situações nas quais bens coletivos estejam em jogo. Por isso, os brasileiros adoram “coisas públicas”, espaços públicos e, acima de tudo, dinheiro público, que para eles pode ser apropriado como se não fosse de ninguém. Como tiveram escravos até um ano antes de proclamarem a república, tudo o que é público é da elite política. O processo eleitoral mostra isso claramente, pois os candidatos não apresentam programas, mas rezam ladainhas e repetem fórmulas mágicas denominadas “promessas eleitorais”. Meros engodos para que o candidato seja eleito. Na realidade, hoje em dia eles não têm representantes, mas mediadores — ou padrinhos. Candidatos cuja distinção (como a dos santos) é o acesso que teriam ao presidente, tomado como um Deus nesta terra cheia de papagaios da espécie galvão.
Quando estava de partida, assisti a um evento notável. Uma reunião de sua Corte Suprema discutindo um projeto de lei que existe em toda e qualquer sociedade civilizada. Trata-se de uma regra que impediria ladrões e corruptos de serem candidatos a cargos públicos e usarem a legislação nacional que lhes permite escapar de tudo em nome de imunidade política definida com má-fé. Fiquei alarmado porque, mesmo diante da obviedade da causa, os magistrados se dividiram. Metade apoiava a lei; uma outra, arguia filigranas legais contra ela. Discutiram por mais de dez horas. Não conseguiram decidir. Repetiram, reiteraram e reafirmaram o que foi chamado de “dilema brasileiro” por um tal de DaMatta, dos mais medíocres estudiosos locais. Aquela indecisão estrutural constitutiva do Brasil que até hoje o faz oscilar entre seguir o caminho da igualdade ou o da aristocracia e da desigualdade. A via habitual que garante aos superiores não cumprir as leis. Devo ainda chamar atenção para...
[A essa altura, leitor, eu perdi a comunicação mediúnica com o espírito desse marciano. Sinto muito, mas aqui fico com a
depressão e a indignação de um velho brasileiro.]
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